Poesia ou outra coisa qualquer



Ao amor que não existe 15|3|11



O meu amor podes ser tu.
Porque me agarras na mão.
Pelo que li nos livros, pelo que ouvi em todas as canções de amor...
Deves ser tu, não pode haver uma tão grande coincidência.
É óbvio que só tu o podes ser.
Mas não és.

O meu amor pode ser aquele que ali vai.
O meu amor já nasceu de certeza, mas ainda não me viu.
Porque se já tivesse visto saberia, e eu o saberia também.
Pode ser este que passou por mim e não olhou, porque ia distraído.
Pode ser o que sentou ao meu lado ontem.
Pode ser o rapaz do apoio ao cliente, que resolveu logo o problema das chamadas mal taxadas.
Ele não me viu, mas era tão simpático, que se calhar se me visse ia encontrar-me.
Ele anda por aí o meu amor que não existe...
E seja como for, já demorou tanto que já tarda. Já não o quero para nada.
Veio tarde para que acredite que possa existir.
Agora mesmo que exista e me encontre já não vou acreditar.
As frases românticas iludiram-me durante algum tempo, mais do que gostaria.
Andava tão infeliz, porque achava que era só má sorte nada daquilo ainda não me ter acontecido.

Depois chegou quem me disse as palavras. Quem me deu todos os momentos em camera lenta, que eu era tão triste por não ter.
Fui muito feliz até ao momento em que deixei de ser.
Achei que tinha perdido o que me era mais precioso.
Todos os livros diziam não haver maior tesouro e que agora que já não o tinha ia sofrer muito.
E assim foi: sofri muito, embora não tanto como diziam os livros, e também nunca mais tive um igual. Os livros tinham razão.

Mas o que nem os livros, nem as canções, nem os filmes disseram, foi que eu nunca mais ia ter algo assim, não porque era impossível, mas sim porque pura e simplesmente não ia ter vontade.

Os contos de fadas têm destas coisas: basta-nos um bem assente para que se perceba que é muito bonito mas não é o melhor que se pode ter.
Por isso meu amor já vens tarde.
Já não vais, com o teu olhar mágico de único amor que há para mim em toda a minha vida, embevecer o meu coração.
Só porque se vieres com essas tretas todas românticas do amor para sempre e que seremos um do outro, eu te direi que ninguém é dono de ninguém, e que o único "para sempre" que conheço é o "até amanhã" do dia que se segue.
Foi assim que fiquei velha aos vinte e quatro anos.
Se quiseres ficar comigo por muitas manhãs, dias ou até noites, vais ter de me convencer durante todo este tempo que não há ninguém melhor para estar.
E tu, se não fores parvo, vais querer que eu te convença também.

Neste tempo haverão pausas, pelo menos assim o espero.
Momentos que eu ou tu nos iremos cansar um do outro e querer outras coisas que andam lá fora pelo Mundo.
Vamos descobrir os dois que amar alguém não é ser dependente dessa pessoa.
Porque se assim fosse o amor era só uma questão de interesse. E não é.
Vamos descobrir que o amor é não precisarmos um do outro para nada, e mesmo assim, querer agarrar em ti e ir sei lá para onde. E fazer-te sorrir, e esperar o momento em que me toques.

Talvez iremos descobrir também que não se ama só uma pessoa. E que se amam todas as pessoas de maneira diferente, e nenhuma é substituível, comparável ou de menor valor que a anterior.
E nada disto vai ser mau, ou complicado, meu amor.
Porque tu e eu não vamos precisar de explicar isto a ninguém.
Porque vamos ser os dois muito cúmplices na nossa maneira de viver tão própria só de nós.
Vamos-nos respeitar como as pessoas que se amam verdadeiramente se respeitam. E quando o nosso amor acabar de uma maneira irá renascer de outra. É normal meu amor.
As pessoas estão sempre a morrer e a renascer por dentro.
Os dias passam e as pessoas não ficam, ninguém fica... elas vão, circulam connosco e também se alteram.
Pelo menos é assim para mim, meu amor. E eu sei que mesmo que para ti não seja, tu vais amar-me como sou.
Mesmo que eu te seja completamente inútil.





15 de Março de 2011, Intercidades Porto>Aveiro.






Foi sem querer. 13|12|10


Estranho já não é estranhar a vida.
Vivemos a estranhar, nós os que vivemos estranhos.
E nos estranhos encontramos por vezes um lugar nosso.
Comuns na nossa estranheza, ou a estranhá-la, encontramos o estranho maior que é o amor.
Vivemos esperando que soe menos estranho.
Menos longe, menos estrangeiro.
Mas sempre de olhos postos lá ao fundo...
Ao perto sente-se uma estranheza na pele.
E todos sabemos que o que é estranho mete medo.
Nunca deixando de ser estranho para mim que me sou, percebo que prefiro sentar-me nesse lugar escuro em que me imagino só.
E no final estamos todos estranhamente sentados
costas com costas,
braço a braço,
lado a lado na estranha solidão que é estranhar o ser.







Fresco como um peixe ainda a lutar pela vida, seguro pela minha mão trémula.
Como uma brincadeira de crianças...
Foi sem querer.
 


Jonnhy Bravo De Traje Académico. 29|11|2010

Há pessoas que vestem roupa.

Outras a roupa é que as veste.

Parece que andam a jogar ao Carnaval.



Ainda agora passou por mim um vestido às flores e um chapéu de palha. Bem chiques.

Dentro levavam uma senhora de atitude semelhante.



(factos observados ontem na viagem de comboio entre aveiro>porto.[14.10.2010])


A Menina Das Margaridas 29|11|2010

Tem um vestido invisível de mangas fofinhas.

Acompanham o vestido uns collants de renda brancos e uns tótós presos por fita de cetim branca.

Descrevo-a assim assim porque me parece branca e burra.

Pouco dona do que lhe acontece, como são as sex-symbol dos contos de fadas.




(factos observados ontem na viagem de comboio entre aveiro>porto.[14.10.2010])



A Fruta Perfeita 8|4|2010

Acordei de novo.
Errado.
Como posso acordar se ainda não consegui pregar olho um minuto que fosse?
“Sim.”
“Sim”, é apenas uma palavra. O casamento é SÓ uma cerimónia. Repete!
“Sim”, é apenas uma palavra. O casa… Não!
“Sim”, não é só uma palavra! “Sim”, são expectativas! Olhos a brilhar e criançinhas a correr descalças pela casa! “Sim”, são os quilos que eu vou engordar e as chatices com a família, as discussões sobre qual o tapete mais apropriado para a entrada… e qual será o plano reforma que mais se identifica com a NOSSA família? Cruzes!!! Casar é ir para velho!
E será que ela é realmente…
Ainda na segunda-feira o Tó veio cá com uma conversa… O Tó é divorciado de profissão. Apaixona-se tão rápido como o diabo esfrega um olho! Já teve mais relações “sérias” do que eu tive lâminas de barbear.
Enfim.
Ele diz que isto de conhecer a pessoa ideal é como ir ao supermercado. Se vamos sempre ao mesmo supermercado da esquina, nunca encontramos nada que nos surpreenda, e das duas uma: ou não compramos nada, ou contentamo-nos com a primeira coisa que nos aparece. Nas duas hipóteses o resultado é o mesmo: frustração. Por isso temos de ir a outros lados, a grandes superfícies... e outras esquinas! Para conhecer mais e assim ter mais possibilidades de encontrar algo melhor. Ora, às vezes podemos ter a sorte de a fruta perfeita estar logo ali ao lado da nossa porta, mas mesmo assim, ele defende que para o reconhecermos temos que provar e apalpar muita fruta antes!
É um génio o Tó, não é?
Fez-me pensar… Será que ela é a verdadeira manga sumarenta da minha vida? Ou apenas ainda não me lambuzei o suficiente para perceber que há algo melhor?

(Exercício de escrita criativa para romance.)

 

 

Natureza morta. 3|3|2010

 
Desperta, a meio da noite, pensei em todas as pessoas que dali a algumas horas começariam a fervilhar na sua rotina, nos gestos maquinais feitos à pressa. Por momentos, enchi-me desse frenesi, embora o relógio indicasse as quatro horas e ainda me sobrasse muito tempo para deambular livremente pelos pensamentos. 

Agarrei numa maçã. No sofá fiquei a admirar a minha merenda. Se existe alguma vantagem em estar acordada a estas horas, é com certeza, poder fazer coisas completamente desnecessárias com toda a calma do mundo. Sentia a sua leve presença contrastando sobre a velha superfície de madeira. O aroma doce carregava em si o travo empoeirado dos pomares solarengos, da brisa que toca gentil em todas as coisas. Sim, sentiu a luz morna de um raio de sol pela manhã, sentiu as gotas de orvalho dissiparem-se sobre a casca macia. Não é uma natureza morta. Foi arrancada à árvore-mãe, mas vive. Fresca nos lábios que a tocam e sumarenta na boca, na língua que a prova e envolve. Cede sob os dentes que a dilaceram, rasgando a pele perfeitamente esticada e a polpa desfaz-se em pedaços. Ouve-se o consumir do fruto. Repleto de uma maldade improvável, peca o desejo. Morre agora. Secam lentamente os restos sem vida. O sumo pegajoso nos dedos. O cheiro chega até mim diferente: mais doce, mais morno. Natureza morta.

 





Possuído frenesi 19|2|10


Carregam-se embalados pela dança.
Resignado ao fardo, o corpo.

Ébrios de escarlate desejo,
desavindos da finitude.

Vão efémeros os tolos.

Cambaleando se elevam
desajeitados objectos da luxúria.

Progridem pesadamente os passos
sobre o chão inconsentido.

Cerram os dentes para sentir,
para pular a dor e o queixume do sôfrego cadáver.

Tranbordam a humanidade como excrementos.
Querem ser santos?
De que serve a ascensão quando já não há vislumbre?
É só esse lugar casto.

Ao avesso se remetem.
Afirmam-se pelo contraste.

Sentem o leve toque da viçosa imperfeição.
Clamam e esticam-se para chegar lá.

O olhar fixa-se louco.
O corpo enrola-se e verga-se na pressa de chegar.

Moram a impaciência e tremem as vaidades.

Masturbam-se da eterna busca,
para que só a morte finde o frenético exercício.







Olha o verso fresquinho! :) 14|2|10


Gostei tanto do filme "Bloom Brothers" que acordei de manhã a pensar na última cena e saiu isto...


Fresquinho, fresquinho! Versos às 8h da matina...:)


Ao cair da derradeira gota
a carne cede à mortalidade do ser.

No erguer do nefasto olhar
a alma acolhe o doce consolo
do corpo que sucumbe.

Na efemeridade do gesto
o homem almeja a magnânime elevação.

Na infértil certeza do corpo que jaz
será a dignidade apenas um símbolo.

A morte cala e não ora.







Derivar, derivar, divagar... 14|2|10


O texto que resultou do exercício de derivação na oficina de escrita criativa de ontem, no Performas.


Gritam no pânico ansioso do corpo que espera.
A boca gesticula o som
e das entranhas surge o vibrar do sangue quente.

O silêncio cala o derradeiro motivo.
A disforme satisfação cinge os membros à prostração.

Galopa ainda na cadência que cresce.
Aproxima o ser alado da lama morna
da terra arrefecida.

Os olhos tacteando a luz incandescente
encontram por fim o cheiro familiar
do corpo vivo que celebra a entrega.

A luz rasteja branca e fria
e vem repousar na carne e nos gestos.
Lentos.
Dançantes.
Sussuram o nascimento que os embala por baixo da pele.





14|2|10


Pendem desossadas as mãos sem gesto.
A força voluntariosa investe e encadeia
o olhar cego e sem vida.

Hoje escapo da minha carne. 



A Carta - Parte II  18|1|09


- Bom dia.
- Bom dia, em que posso ajudar?
- Um cadernos dos pretos e uma caneta daquelas.
- Muito bem. Ora aqui está.
- Quanto é?
- Dois euros, por favor.
- Aqui tem. Bem haja.
- Muito Obrigado.

Fui para casa a tentar não pisar nas fendas do passeio. Sentia a alegria de uma criança de seis anos. Quando me sentei à mesa olhei para a folha imaculada. Um caderno em branco. Uma caneta por estrear. Pensei em tudo o que podia dizer. Quem iria ser naquela folha de papel?

Finalmente percebi o que tinha de fazer. Tinha que faze-lo. Era perfeito, genial, brilhante.

(Depois de a ter deixado na caixa do correio ainda pensou que era uma estupidez.)

Esperou. Esperou e nada aconteceu. 
Num segundo ela abriu as janelas, as cortinas. Tudo. Agarrou na folha de papel e subiu para cima da estante.
Olhou-o nos olhos como se soubesse de tudo desde o início e ali ficou.

 

 

A Carta - Parte I 18|1|09

A manhã estava calma.
Surpreendentemente, naquele dia, os finos vidros das janelas pareciam ser suficientes para impedir a realidade da grande metrópole de entrar pela casa adentro.

Apesar de tudo não conseguia dormir.

Aquela carta...

Olhava fixamente para os objectos e eles pareciam mover-se num ritmo silencioso e subtil.
O som do seu respirar parecia ensurdecedor.
Todos os gestos insuportáveis, ansiosos.

A calma não chegava e a paz também não.

Aqui, desesperada por não conseguir dormir, apercebi-me de como era ridícula.
Patética. Pequena.
Como era pequeno o meu mundo...

Acabei por dizer para mim mesma:
- Clara, precisas de um pouco de perspectiva. Este quarto, este prédio, esta cidade são apenas uma pequena partícula do vasto universo. E tu... tu és apenas humana. Uma carta é apenas um papel.

Sacudi os cobertores, levantei-me num pulo.
Abri todas as janelas de par em par.
Deixei entrar o ar da manhã. Puro e real.

Agarrei no papel em branco. Subi para cima do móvel mais alto e esperei.
Tudo fez sentido.